Às vezes, o importante é sair de lá vivo5 min read

Acho que estava no sétimo ano quando tive que aprender a lidar com a pressão.

Chorava com demasiada facilidade quando as coisas corriam mal. Detestava ser confrontado pelos outros, não necessariamente repreendido, mas sim discutir com eles. O mundo ruía com facilidade para mim.

Estas memórias de tempos frágeis vieram quando lia um livro do Miguel Esteves Cardoso. A frase era:

“Se tiver essa psicopatia de não ligar ao que os outros dizem, use-a”

Para mim não foi algo que nascesse com, mas sim algo que acabei por ter de desenvolver.

Lembro-me da altura com precisão porque foi quando entrei no futebol.

Decidi ser guarda-redes, e como muitas coisas que fiz até hoje, esta não foi uma decisão tomada após cismar sobre o assunto.

Já tinha experimentado jogar à frente. Na escola e por ventura algum clube que me deixou treinar um dia ou outro, mas sentia-me perdido em campo. Como tudo aquilo que se tenta fazer pela primeira vez, somos maus e nunca sabemos onde estar. Sinceramente, a baliza não era melhor, a única diferença é que era evidente que tinha de estar perto dela para defender (genial, eu sei). 

Naquele ano, passei de um rapazito franzino e pequeno para um rapazito franzino de estatura média, com o meu metro e setenta e doze anos.

Então, lá me aventurei para a baliza.

O início foi ok, definitivamente não era bom, mas o meu tamanho ajudava-me para o escalão que estava a jogar. Saltar para a bola e afastá-la das redes era realmente prazeroso. Adorava ser o desmancha prazeres. De maneira muito pouco ortodoxa, lá fui evoluindo durante um mês ou dois.

Depois desse período, o meu treinador decidiu que já estava minimamente bem para poder jogar.

Fora convocado para o meu primeiro jogo contra uma das piores equipas do campeonato. Estava frio, lembro-me bem disso. Como pessoa sã que o meu treinador era, não me deixara começar de início (nessa época julgo que só o fiz, no máximo, uma mão cheia de vezes).

Não tardara até que estivessemos a vencer por 3 bolas a zero. Não me recordo dos golos, mas lembro-me de pensar que não éramos assim tão maus e que partilhar a felicidade de vencer com os meus colegas sabia muito bem, mesmo não jogando. Era maduro o suficiente para compreender a minha posição e estado na altura (ou se calhar apenas não me lembro de ter ficado triste).

O jogo foi-se desenrolando e aproximava-se do final. No banco, íamos rindo e vivendo aquele sábado de maneira bem diferente da outra equipa que se sentava a metros de nós.

A dez minutos do fim, o treinador disse:

“Tomás, vai aquecer”

Toda aquela tranquilidade desvaneceu-se muito, mas muito rapidamente. O coração acelerou como nunca, e a minha garganta ganhou um nó que não deixava nem passar água.

“Sim mister”

Não, não estou pronto.

Levantei-me e fiz o aquecimento que fazia todos os dias no treino.

Aqueci cinco minutos, mas desejei que tivessem passado dez.

“Anda Tomás”

Não, por favor.

“O tempo vai acabar. Não vale a pena.”

Na altura adorava que estas palavras me tivessem saído pela boca, mas as palavras vêm do coração, e eu tinha um nó na garganta.

“Árbitro! Vamos trocar de guarda-redes!”

Não sei se o meu treinador reparou, mas as minhas mãos tremiam.

“Confiança miúdo, vai correr tudo bem”

Gostava de vos dizer que estas palavras me acalmaram. No entanto, não o fizeram.

Corri para dentro de campo. Não ia jogar futebol, ia entrar numa batalha cujos inimigos eram todos aqueles à minha volta. A bala perdida podia aparecer de qualquer lado, mas andavam ao pontapé com ela. Desde que se mantivesse longe de mim, estaria vivo.

Os cinco minutos passaram lentamente. Eu tremia, mas felizmente a bola não andou muito perto de mim. Algo que não me fazia estar desatento mesmo quando o outro guarda-redes tinha a bola na mão (nunca se sabe se ele não marca diretamente, ou pior, se faz com que a bola venha na minha direção).

Mesmo a acabar a partida, mal sabia se a bola era mesmo redonda.

Até que, a minha atenção me valeu.

Um rapaz, mais ou menos da minha altura, interceptou a bola no meio campo e decidiu pontapeá-la (não uso o termo chutar nem cruzar pois de certeza que não foi isso que ele quis fazer).

A bola subiu.

Subiu.

Subiu.

Subiu.

“Não vem na minha direção, alguém que trate dela”

Começou a descer.

A descer.

“Ela vem muito rápido”

A descer.

“Alguém vai chegar à bola”

A descer.

“Ela está a vir na minha direção.”

A descer.

“Ela vai à baliza!!!”

E veio.

Saltei com a missão de não a poder deixar entrar. Não importava a maneira como a defendesse, ela só não podia, pelo amor de Deus, entrar.

De maneira estranha, curvada, obtusa e desajeitada, consegui tirar aquele cometa da minha baliza.

Alguém a chutou para a frente.

O árbitro apitou para o fim.

Acabou.

Estava vivo.

Acho que ninguém se apercebeu, mas lacrimejava.

Não por termos vencido.

Não pela defesa.

Mas sim

por

ter

sobrevivido.

Dei alguns passos na direção dos meus colegas.

Todos de sorrisos rasgados por termos ganho.

O meu coração ainda batia fortemente.

Para ser sincero, não me parecia ter acabado.

A ansiedade persistia.

O mister veio até mim, passado um pouco:

“Parabéns Tomás, fizeste um bom jogo.”

Atravessava o campo de batalha, podia descansar.

Acabei por gostar demasiado de aquilo tudo.

Tanto que o fiz por mais dez anos.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *